Author Topic: Crônicas e Futebol, Nelson Rodrigues  (Read 1756 times)

Offline paulosantoro

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Crônicas e Futebol, Nelson Rodrigues
« on: June 21, 2014, 03:40:02 am »
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Literatura, crônicas, futebol, mundiais... tomo a liberdade de reproduzir uma crônica do grande Nelson Rodrigues, escrita em março de 1958. Brilhante, ele antevê o que seria aquela Copa e o destino do garoto Pelé. (do livro À Sombra das Chuteiras Imortais - crônicas de futebol - Nelson Rodrigues)
 
A REALEZA DE PELÉ
Depois do jogo América x Santos , seria um crime não fazer de Pelé o meu personagem da semana. Grande figura, que o meu confrade Albert Laurence chama de “o Domingos da Guia do ataque”. Examino a ficha de Pelé e tomo um susto: — dezessete anos! Há certas idades que são aberrantes, inverossímeis. Uma delas é a de Pelé. Eu, com mais de quarenta, custo a crer que alguém possa ter dezessete anos, jamais. Pois bem: — verdadeiro garoto, o meu personagem anda em campo com uma dessas autoridades irresistíveis e fatais. Dir-se-ia um rei, não sei se Lear, se imperador Jones, se etíope. Racialmente perfeito, do seu peito parecem pender mantos invisíveis. Em suma: — ponham-no em qualquer rancho e a sua majestade dinástica há de ofuscar toda a corte em derredor.
O que nós chamamos de realeza é, acima de tudo, um estado de alma. E Pelé leva sobre os demais jogadores uma vantagem considerável: — a de se sentir rei, da cabeça aos pés. Quando ele apanha a bola, e dribla um adversário, é como quem enxota, quem escorraça um plebeu ignaro e piolhento. E o meu personagem tem uma tal sensação de superioridade que não faz cerimônias. Já lhe perguntaram: — “Quem é o maior meia do mundo?”. Ele respondeu, com a ênfase das certezas eternas: — “Eu”. Insistiram: — “Qual é o maior ponta do mundo?”. E Pelé: — “Eu”. Em outro qualquer, esse desplante faria rir ou sorrir. Mas o fabuloso craque põe no que diz uma tal carga de convicção, que ninguém reage e todos passam a admitir que ele seja, realmente, o maior de todas as posições. Nas pontas, nas meias e no centro, há de ser o mesmo, isto é, o incomparável Pelé.
Vejam o que ele fez, outro dia, no já referido América x Santos. Enfiou, e quase sempre pelo esforço pessoal, quatro gols em Pompéia. Sozinho, liquidou a partida, liquidou o América, monopolizou o placar. Ao meu lado, um americano doente estrebuchava: — “Vá jogar bem assim no diabo que o carregue!”. De certa feita, foi até desmoralizante. Ainda no primeiro tempo, ele recebe o couro no meio do campo. Outro qualquer teria despachado. Pelé, não. Olha para a frente e o caminho até o gol está entupido de adversários. Mas o homem resolve fazer tudo sozinho. Dribla o primeiro e o segundo. Vem-lhe ao encalço, ferozmente, o terceiro, que Pelé corta sensacionalmente. Numa palavra: — sem passar a ninguém e sem ajuda de ninguém, ele promoveu a destruição minuciosa e sádica da defesa rubra. Até que chegou um momento em que não havia mais ninguém para driblar. Não existia uma defesa. Ou por outra: — a defesa estava indefesa. E, então, livre na área inimiga, Pelé achou que era demais driblar Pompéia e encaçapou de maneira genial e inapelável.
Ora, para fazer um gol assim não basta apenas o simples e puro futebol. É preciso algo mais, ou seja, essa plenitude de confiança, de certeza, de otimismo, que faz de Pelé o craque imbatível. Quero crer que a sua maior virtude é, justamente, a imodéstia absoluta. Põe-se por cima de tudo e de todos. E acaba intimidando a própria bola, que vem aos seus pés com uma lambida docilidade de cadelinha. Hoje, até uma cambaxirra sabe que Pelé é imprescindível na formação de qualquer escrete. Na Suécia, ele não tremerá de ninguém. Há de olhar os húngaros, os ingleses, os russos de alto a baixo. Não se inferiorizará diante de ninguém. E é dessa atitude viril e mesmo insolente que precisamos. Sim, amigos: — aposto minha cabeça como Pelé vai achar todos os nossos adversários uns pernas-de-pau.
Por que perdemos, na Suíça, para a Hungria? Examinem a fotografia de um e outro time entrando em campo. Enquanto os húngaros erguem o rosto, olham duro, empinam o peito, nós baixamos a cabeça e quase babamos de humildade. Esse flagrante, por si só, antecipa e elucida a derrota. Com Pelé no time, e outros como ele, ninguém irá para a Suécia com a alma dos vira-latas. Os outros é que tremerão diante de nós.

[Manchete Esportiva, 8/3/1958]
 
« Last Edit: July 20, 2014, 07:48:00 pm by paulosantoro »

Offline nunogrl

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Re: Crônicas e Futebol, Nelson Rodrigues
« Reply #1 on: July 15, 2014, 02:15:56 pm »
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Grande ode :)

Deu vontade de ver o moleque jogar.

Offline Gago

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Re: Crônicas e Futebol, Nelson Rodrigues
« Reply #2 on: July 15, 2014, 04:26:56 pm »
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Mestre!

Offline paulosantoro

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Re: Crônicas e Futebol, Nelson Rodrigues
« Reply #3 on: July 16, 2014, 02:02:08 am »
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Amigos sou um entusiasta desse autor, se quiserem tenho esse livro em formato Word. Nuno, não sei se conheces, mas aqui no Brasil Nelson Rodrigues é uma unanimidade, ironicamente, pois uma das máximas dele foi a famosa "a unanimidade é burra". Gago, não preciso dizer.

Offline Fialho

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Re: Crônicas e Futebol, Nelson Rodrigues
« Reply #4 on: July 16, 2014, 02:40:46 am »
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Eu quero!!!

Offline paulosantoro

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Re: Crônicas e Futebol, Nelson Rodrigues
« Reply #5 on: July 16, 2014, 11:45:02 pm »
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Nelson Rodrigues é único! Existe alguma forma de passar o arquivo pelo fórum? Se não houver me passa o email por MP que eu envio.  8)

Offline GADREL

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Re: Crônicas e Futebol, Nelson Rodrigues
« Reply #6 on: July 20, 2014, 02:23:20 am »
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Legal! :)
LEGIO PATRIA NOSTRA.

Offline edulpj

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Re: Crônicas e Futebol, Nelson Rodrigues
« Reply #7 on: July 27, 2014, 05:49:27 pm »
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Em sua dramaturgia, Nelson Rodrigues retratou com fidelidade fotográfica a sociedade fluminense dos anos 50... Sórdida, decadente, superada... O mais incrível, é que fez isso com tal maestria, que os fluminenses o idolatram até hoje como retratista...
Conheça a Locomotiva Esportiva: http://www.locomotivaesportiva.com.br/

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Offline cariocarj01

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Re: Crônicas e Futebol, Nelson Rodrigues
« Reply #8 on: July 27, 2014, 08:54:13 pm »
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Muito bom.
A verdadeira dificuldade não está em aceitar idéias novas, mas em livrar-se das antigas. (John Maynard Keynes)

Offline paulosantoro

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Re: Crônicas e Futebol, Nelson Rodrigues
« Reply #9 on: July 29, 2014, 12:50:51 am »
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Em minha opinião, Nelson Rodrigues escrevia com os nervos. Paixão com drama. A expressão "a vida como ela é" diz tudo. A paixão pelo futebol combinada com a facilidade em enxergar o trágico, o imprevisível, o exasperado, produziu as crônicas esportivas que eu adoro. A personagem Sobrenatural de Almeida, que habitava o Maracanã, é o máximo! 
« Last Edit: July 29, 2014, 12:52:22 am by paulosantoro »

Offline edulpj

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Re: Crônicas e Futebol, Nelson Rodrigues
« Reply #10 on: July 30, 2014, 05:24:55 pm »
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Eu ia postar no sub-forum de esportes, mas achei mais adequado aqui...

O PESO DA CAMISA DO CORINTHIANS

Jogar no Corinthians é diferente. Não é como uma paixão adolescente descartável, tampouco uma daquelas certezas que possuíamos naquela época. É amor inconteste, é a alma gêmea com a qual sonhamos desde que a testosterona toma conta do nosso ser. Jogar no Corinthians é respeitar uma cultura, um povo, uma nação. É ter em conta que em cada segundo de nossas vidas é para servir a uma causa e não para dela usufruir. Jogar no Corinthians é como ser convocado para a guerra irracional e jamais duvidar que ela é a mais importante de todas as que existiram. É ser sempre chamado a pensar como Marx, lutar como Napoleão, rezar como o dalai-lama, doar a vida a uma causa como Mandela e chorar como criança.

Chorar de puros sentimentos, daqueles que arrepiam ao simples tocar da pele. Chorar de raiva inexplicável, quando sabemos que somos mais fracos e impotentes. Jogar no Corinthians é ser como todos os que nos assistem, é sentir a dor lancinante de estar longe dos que amamos, é ter certeza que ali, em campo, representamos muitos que lutam cada segundo para sobreviver no mais inóspito mundo, onde são a todo o momento agredidos, massacrados e cuspidos.

Jogar no Corinthians é ter coragem de enfrentar a massa, de colocar a cara para debater, discutir e explicar. Para jogar no Corinthians, não há espaço para passeios nem relax, o amor ao clube não deixa dormir. É uma honra infinita e, como tal, exige respostas, exclama respeito e compromisso. Jogar no Corinthians é saber o que é ser brasileiro, é alimentar uma família e a si mesmo com um mísero tostão, é andar horas, séculos, milênios em vagões imundos e porcos, sem que uma única voz se levante para nos proteger ou ao menos nos defender. Jogar no Corinthians é ir ao banheiro mais sujo do mundo por amor a uma bandeira.

Essa paixão não permite fugas, esconderijos, falsidades. É necessário ter coragem de representar o que de mais rico nós temos e de apresentar mais que atestado de bons antecedentes. Jogar no Corinthians é possuir uma declaração de honraria, ainda que seja válida por poucas semanas. Não é só suar a camisa, é sangrar até a morte. É parar de respirar quando uma derrota nos derruba sem direito a desfibrilador algum. É nunca rir da desgraça que provocamos (até porque jamais saberemos o tamanho dela).
Jogar no Corinthians é colocar alma e coração antes do bolso ou do futuro, e colar o supercílio com uma cola qualquer quando ele se mete a chorar de dor vermelha. Jogar no Corinthians é adormecer com o filho querido, é sentir o pulsar de seu pequeno coração, é abreviar a dor quando ela se estabelece. É saber o que é a sociedade no pleno sentido da palavra.

Espera-se de quem joga  no Corinthians uma postura altaneira e respeitosa, uma correção de conduta em relação aos anseios do povo que lá os coloca, endeusa, acaricia. Uma nação que tudo oferece aos jogadores que possam retribuir a confiança. Jogar no Corinthians exige um sentimento de brasilidade, de reconhecimento da extrema miscigenação existente nas arquibancadas, em cada mesa de bar, nos ônibus lotados de suor e sofrimento, para que se consiga responder às questões básicas colocadas na camisa alvinegra. Ser corintiano é, como disse o extraordinário Toquinho, “ser um pouco mais brasileiro”. Eu, por outro lado, digo: negros e brancos construindo uma nação.

Nada se compara ao Corinthians nesta terra chamada Brasil. Aqui, japoneses, árabes, mongóis, siberianos, italianos, bolivianos – além dos nordestinos – e até os originários de estados rivais se irmanam, dão-se as mãos, sofrem em comunhão. Gritam em êxtase a cada vitória por menos importante que seja, como se cada vizinho fosse mais que irmão, pai, mãe. Ou, quem sabe, ele seja realmente um representante de suas famílias distantes ou ausentes, inventando uma nova e substituta, formando uma gigantesca rede de genomas humanos com o mesmo DNA. Muitos não entendem a reação da torcida, mas é a que conhece.

Antigamente, se jogavam ovos e tomates nas péssimas apresentações artísticas. Hoje, jogam-se pedras, não nos artistas, e sim na falta de verdade na relação existente. E na instituição protegida pela armadura de um ou mais veículos e da guarda policial.

Sócrates Brasileiro Sampaio de Souza Vieira de Oliveira

in "Revista Carta Capital - 14/02/2011"
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